sábado, 23 de agosto de 2008

TROTSKY

• No dia 20 de agosto, completam-se 68 anos do atentado que tiraria a vida de Leon Trotsky por um agente do stalinismo. O assassinato não foi algo inesperado. Era parte de um esforço em eliminar qualquer ligação entre os dirigentes da Revolução de Outubro e as gerações mais jovensLeon Trotsky lia atentamente um texto entregue a ele por seu assassino. De repente, um golpe violento na cabeça dado pelas costas com uma picareta de alpinista o jogou ao chão.Mesmo ferido mortalmente, ele se agarrou ao assassino enquanto seus guarda-costas chegavam. Gritou para que não o matassem, para que se descobrisse o mandante do crime.Era o dia 20 de agosto de 1940. Trotsky foi levado ao hospital ainda lúcido. Em suas últimas palavras, deixou a mensagem de otimismo a seus camaradas em todo o mundo: “Estou próximo da morte, devido ao golpe de assassino político... Por favor, digam aos nossos amigos... Estou certo... da vitória da IV Internacional... continuem”.Antes de entrar na sala de cirurgia, se despediu carinhosamente de Natasha, sua companheira de muitos anos. Entrou em coma logo depois e morreu no dia seguinte.O assassino Ramon Mercader, o nome verdadeiro do assassino, era um agente da GPU, serviço de segurança russo antecessor da KGB. Foi um crime longamente planejado pelo stalinismo. Mercader viajou para a URSS em 1937, lá permanecendo por seis meses. Depois, no México, conseguiu se aproximar pessoalmente de uma secretária de Trotsky, Silvia Ageloff.A partir daí, se apresentou ao velho revolucionário como um simpatizante de suas idéias. No dia do assassinato, entregou um texto a Trotsky para que ele opinasse. Aproveitando-se de sua distração, assassinou-o pelas costas.Depois de sair da prisão, em 1961, Mercader foi para URSS, onde foi condecorado com a medalha de “Herói da União Soviética”.Stalin tenta cortar o fio de continuidade do marxismoO assassinato de Trotsky não foi algo inesperado. Era parte de uma política consciente do stalinismo de eliminar qualquer ligação entre os velhos dirigentes da Revolução Russa de 1917 com as gerações mais jovens. Era a tentativa de cortar o fio de continuidade do marxismo revolucionário num momento em que se preparava, novamente, uma guerra mundial, com suas conseqüências revolucionárias. Existia a possibilidade de se construir uma alternativa de direção revolucionária ao redor do velho bolchevique russo.Trotsky pertenceu a uma geração de revolucionários sem precedentes na história. Uma geração que deu respostas teóricas e políticas desde questões relacionadas à organização do partido revolucionário até a construção do poder de Estado pela classe operária.Ele não foi apenas um dos principais dirigentes da Revolução Russa ou o organizador do Exército Vermelho, como é costumeiramente lembrado. Foi o primeiro a identificar o perigo da crescente burocratização do partido e do Estado operário soviético, que ameaçava as conquistas da Revolução de Outubro.Dedicou sua vida, a partir da morte de Lenin, a uma luta prática e teórica para libertar o movimento operário internacional da dominação stalinista. Lançou-se numa batalha sem tréguas contra a burocratização e em oposição à desastrosa política da burocracia dirigida por Stalin.Logo após a ascensão do stalinismo, o revolucionário russo organizou a Oposição de Esquerda e se opôs radicalmente à teoria do “socialismo num só país” defendida por Stalin. Trotsky sustentava que era impossível construir o socialismo limitado às fronteiras nacionais de um país economicamente atrasado como a Rússia. Como Lenin, acreditava que a Revolução Russa era só o princípio da revolução socialista mundial.Trotsky dedicou os últimos anos de sua vida a construir uma alternativa à desastrosa política dos partidos comunistas, intervindo nos processos revolucionários. Realizou o que em sua própria opinião era “o trabalho mais importante” de sua vida: a construção da IV Internacional.A perseguição implacável do stalinismoEm 1927, Trotsky foi expulso do partido, destituído de suas funções no Estado Soviético e, no início de 1928, deportado para o Cazaquistão. No ano seguinte, Trotsky foi banido da URSS e sua condição de cidadão soviético foi cassada.Trotsky era um homem sem nacionalidade ou cidadania. Começava, assim, uma longa jornada de exílios e expulsões que iniciou na Turquia, passou pela Noruega e pela França, até chegar, finalmente, ao México, em 1937, único país que aceitou o exílio do revolucionário russo.Quatro anos antes do assassinato, tiveram início os famosos Processos de Moscou contra dirigentes bolcheviques. Neles, foram fuzilados velhos colaboradores de Lenin, como Zinoviev, Kamenev, Bukharin, Antonov-Ovseenko, entre outros. Durante os processos, o próprio Trotsky foi condenado à morte por ser considerado um suposto “agente sabotador do imperialismo”. Nesse período, milhares de ativistas da Oposição de Esquerda já haviam sido atacados, assassinados, presos ou deportados.A campanha de terror tinha o objetivo de suprimir toda oposição genuinamente socialista contra a usurpação do poder feita pelo stalinismo. O alvo maior do stalinismo era atacar os que estavam junto com Trotsky. Em fevereiro de 1937, Leon Sedov, filho de Trotsky, foi morto em Paris. Às vésperas da fundação da IV, Rudolf Klement, secretário de organização da nova Internacional, foi assassinado, e o projeto de estatutos foi roubado.Em 24 de maio de 1940, se deu a primeira tentativa de assassinato de Trotsky. Um bando de assassinos stalinistas, liderados pelo pintor David Siqueiros disparou rajadas de balas contra a casa do revolucionário que escapou do atentado.Na segunda tentativa, conseguiram seu objetivo. Stalin havia, finalmente, liquidado o último dos grandes dirigentes bolcheviques da Revolução de Outubro.O stalinismo foi julgado pela históriaO stalinismo procurava desarticular a recém-fundada IV Internacional. Possui um grande significado o fato de Stalin, que naquele momento dirigia um Estado operário e tinha influência em partidos de massas de todo o mundo, ter de recorrer a um assassinato pelas costas de um velho de 61 anos.Hoje, o aparato stalinista desabou. Mesmo o que resta dos partidos stalinistas rejeita a vinculação com Stalin. Por outro lado, a IV Internacional sobreviveu e está sendo reconstruída. Obviamente, o assassinato do principal dirigente da Internacional foi uma perda colossal.Mesmo assim, o stalinismo não conseguiu suprimir o legado teórico e político do revolucionário russo. Suas obras constituem uma extraordinária contribuição para a teoria marxista. Um legado para as novas gerações de revolucionários que mantêm viva a sua luta em defesa do socialismo e da IV Internacional.

domingo, 17 de agosto de 2008

DE CUBA...

ENTREVISTA / YOANI SÁNCHEZ"Cuba me dói"
Por Mauro Malin em 12/8/2008
Interessado em coisas de Cuba, fui capturado pela magia do blog de Yoani Sánchez, Generacion Y. Sem saber que ela é uma celebridade internacional, mandei-lhe uma mensagem eletrônica pedindo que desse entrevista ao Museu da Pessoa para contar sua história de vida.
Foi Heci Candiani, a editora de conteúdo do portal do Museu, que me falou da notoriedade de Yoani. Quando lhe mandei cópia da mensagem para Yoani, devolveu: "Boa sorte, acho que você consegue", mas havia uma certa ironia subjacente na continuação do texto: "O blog dela é genial e ela foi eleita uma das 100 personalidades do ano pela Time, depois de ganhar um prêmio de literatura na Espanha". Depois, abri uma edição da revista Claudia e lá estava Yoani, com o maior destaque. Mas não desanimei.
Inspirei-me esotericamente no pianista cubano Chucho Valdés. Na segunda mensagem que mandei a Yoani, eu disse que escrevia ao som de Chucho executando Delirio, filin, de Portillo de la Luz, e que isso me dava saudades de Havana. Não sei se foi por isso, mas a resposta veio rápida, com um número de telefone. Grande Chucho. Grande Yoani. Grande Cuba.
Fiz por telefone uma entrevista de 40 minutos com Yoani Sánchez, depois de ler todos os tópicos de seu blog. A conversa foi gravada, com autorização dela (íntegra da entrevista e os áudios disponíveis aqui).
O segredo do blog de Yoani Sánchez é que ela tem muito tempo para pensar e pouco tempo para colocar na internet o que escreve. Ou seja, muito tempo para pensar no que publica. Resultado: escreve pouco e bem.
Depois que se ouve essa jovem dizer que tem como premissa avançar a cada dia um pouco mais no caminho da tolerância, não será temerário prever que, seja qual for o desenlace da etapa castrista, Yoani Sánchez terá um papel relevante na sociedade cubana. Boa sorte.
Assim fala Yoani Sánchez:
** "No bairro muito humilde chamado Centro Havana, com uma mistura de marginalidade e gente do povo, onde nasci, cresci até os 15 anos. Tive uma adolescência feliz, tranqüila. Mas o fundamental de minha adolescência foram as aflições materiais, produto da crise econômica cubana."
** "A faculdade foi um período ao mesmo tempo difícil e lindo. Conheci meu marido, Reinaldo Escobar, e nasceu meu filho, Teo."
** "Na minha vida não tenho muitos paradigmas de pessoas importantes ou gente famosa. Ao contrário, sou permanentemente influenciada pelas pequenas pessoas – meus amigos, alguém que compõe uma canção, alguém que me conta algo na rua. E tenho também algumas premissas na vida. Uma delas é cada dia avançar um pouco mais na tolerância. A sociedade cubana necessita que os indivíduos aprendam a tolerar a diferença, as opiniões que não são similares às suas."
** "Em Cuba, respiramos política, comemos política. Eu me considero uma pessoa que é da sociedade civil, tratando de descrever como vive e de conectar-se com outras pessoas da sociedade civil. Claro, para o governo isso é oposição. Mas eu mesma não me defino como uma opositora."
***
Leitura, de pai para filha
Fale de seu nascimento.
Yoani Sánchez – Me chamo Yoani Sánchez, tenho 32 anos, nasci na cidade de Havana de uma família muito humilde. Meu pai se chama Willy e é ferroviário. Foi maquinista em estrada de ferro até a crise econômica dos anos 90, quando todo o sistema ferroviário em Cuba entrou em colapso, e agora ele conserta bicicletas. Minha mãe, Maria, também trabalha nos transportes, táxis. Tenho uma família pequena, com uma irmã um ano mais velha.
Qual foi sua escola primária?
Y.S. – Eu estudei numa escola primária, regular, normal, que se chamava "República Popular Chinesa", num bairro relativamente marginal. Mas fui feliz. No meu primário tive muitos amigos e bons professores. Depois passei a uma escola secundária que se chama "Protesta (Protesto) de Baragua(á)". O nome vem de uma data histórica importante da Guerra de Independência de Cuba. Depois fiz o pré-universitário numa escola chamada "Romênia", num momento em que a Romênia já não era uma república socialista.
A escola deu a você uma base de alfabetização e de interesse pela leitura?
Y.S. – O gosto pela leitura me vem fundamentalmente de meu pai. Na escola aprendi muitas coisas, mas creio que em geral a educação em Cuba é um pouco mais passiva. As pessoas tomam o conhecimento dos livros que o professor dá, mas tem muita importância a orientação que os pais dão em casa. E graças a meu pai, que me interessou muito no mundo na literatura, li muito em menina. Isso me ajudou também a passar longas horas de aborrecimento na infância. A literatura me ajudou a sair desse aborrecimento.
Por que seu pai gosta tanto de ler?
Y.S. – Penso que meu pai gostava de ler também por uma questão de trabalho. Tinha que ficar muito tempo fora de casa, quando trabalhava na ferrovia, talvez longas horas esperando dentro da locomotiva para partir em viagem, e adotou a literatura como divertimento, como compensação para as horas de espera de sua profissão. E tinha uma boa coleção de livros em casa, sobretudo muitos clássicos. Minha literatura da infância não era uma literatura moderna. Era a literatura dos clássicos – Dostoiévski, Victor Hugo, os clássicos gregos. E era uma época em que a produção de livros em Cuba era maciça. Imprimiam-se muitos exemplares de cada título e também se traziam muitos títulos impressos na União Soviética. Isso fazia com que o preço dos livros fosse acessível para qualquer pessoa. Não é mais assim. Agora os livros são bastante caros, e as pessoas talvez não comprem tantos livros como nos anos 1970 e 80.
Adolescência com gosto de privação
Como foi sua adolescência?
Y.S. – Tive uma adolescência feliz, tranqüila. Vivi em Havana, nessa época. Mas o fundamental de minha adolescência foram as aflições materiais, produto da crise econômica cubana. Em 1990 eu tinha 15 anos. Um ano antes havia caído o Muro de Berlim e uns meses depois se desmembrava a União Soviética. E isso marcou toda a minha geração. A mim, particularmente, porque me marcou muito materialmente. Meu pai perdeu seu trabalho. O trabalho de minha mãe, que era vinculado ao transporte, também sofreu muito devido à questão do petróleo e da ausência de gasolina. Assim, recordo minha adolescência mesclada com as limitações materiais. Saber que não havia muitas coisas, justo no momento em que um adolescente quer começar a exibir a moda, a música, os penteados. As pessoas de minha geração passamos por momentos muito extremos de carestia e de ausência de produtos.
Mãe aos 20 anos, na faculdade
Como foi a sua faculdade?
Y.S. – Foi um período ao mesmo tempo difícil e lindo. Aos 17 anos conheci aquele que até hoje é meu marido, o jornalista Reinaldo Escobar, e comecei na faculdade de pedagogia para ser professora de literatura, mas não gostei do método de estudo: pedagogia em excesso e muito pouco de espanhol e literatura. Então decidi mudar para a especialidade de filologia. E bem nesse momento fui mãe, o que complicou muito as coisas, porque a crise econômica em Cuba permanecia forte, eu tinha um bebê, e tive que fazer um pouco de mágica para poder estudar na universidade e criar meu filho.
Para voltar a morar em Cuba, passaporte destruído
Fale de suas viagens dentro e fora de Cuba.
Y.S. – Gosto muito de viajar dentro de Cuba, mas nós, cubanos, temos muitas limitações para viajar dentro do nosso país. Primeiro porque viajar dentro de Cuba implica longas filas para comprar passagem de ônibus, avião ou trem. O transporte em Cuba está atualmente num estado catastrófico e passou por anos muito difíceis. Por isso viajamos pouco dentro do nosso país, devido a todas essas limitações de transporte. De todo modo, tenho amigos no Oeste, em Pinar del Río, onde vou freqüentemente. Também gosto muito do Centro da Ilha, as montanhas de Escambray, acampei aí com amigos. Em geral, gosto muito da natureza do meu país, das pessoas.Para fora de Cuba viajei em 2000, para a Alemanha. Tenho muitos amigos na Alemanha, porque sempre gostei da língua alemã, graças a minhas leituras de adolescência, quando li Thomas Mann, Hermann Hesse. Me veio daí muito prazer com o alemão e continuei estudando alemão. Isso fez com que eu tenha muitos amigos em países de língua alemã, como Alemanha, Suíça e Áustria. Meus amigos, quando terminei a universidade, em 2000, me convidaram para um mês de férias na Alemanha. Foi uma viagem muito importante para minha vida. Estive também na França.
Em 2002, a asfixia econômica em Cuba e também a sensação de asfixia pela falta de liberdade me levaram a emigrar para a Suíça, graças, igualmente, a amigos que me ajudaram nesse projeto. Lá vivi dois anos. No último ano, com meu filho, que pude levar comigo. Mas depois de dois anos, por problemas familiares, tive que regressar a Cuba.
Voltei em 2004 de uma maneira muito louca. Quando nós, cubanos, vivemos mais de onze meses fora do país, já não podemos voltar a residir em nosso próprio país. Por isso, em 2004, tive que entrar como turista em Cuba e destruir meu passaporte para poder ficar. É algo muito raro. Não conheço muitos casos em que se tenha feito algo similar. Normalmente os cubanos fazem ações desse tipo para emigrar, não para imigrar. Mas não estou arrependida do que fiz. Aqui tenho meus amigos, minha pequena família e muitos projetos. Então, no momento, sou feliz aqui. Queria viajar em maio, à Espanha, para receber o Prêmio Ortega y Gasset de Jornalismo, mas não me deram a permissão para sair. Para viajar para fora de Cuba, nós, cubanos, necessitamos de uma carta que nos autoriza a viajar, e o governo cubano negou essa solicitação de viagem.
Universidade da tolerância
Pode falar um pouco de sua filosofia de vida?
Y.S. – Eu me considero uma pessoa feliz. Tenho uma família creio que muito harmônica. Não gosto muito dos paradigmas, isto é, na minha vida não tenho grandes paradigmas de pessoas importantes ou gente famosa. Ao contrário, sou permanentemente influenciada pelas pequenas pessoas – meus amigos, alguém que compõe uma canção, alguém que me conta algo na rua –, não a influência dos grandes nomes da história ou da literatura, mas a das pessoas anônimas. Essas me influenciam muito mais.
E tenho também algumas premissas na minha vida. Uma delas é cada dia avançar um pouco mais na tolerância. Creio que a sociedade cubana necessita que os indivíduos aprendam a tolerar a diferença, as opiniões que não são similares às suas. Estou nesse aprendizado. Estou agora na universidade da tolerância. É um longo caminho, longo caminho de respeitar o que diz o outro, e acho que falta muito para que me forme e tenha um diploma... Acho que pelo menos estou no caminho.
A filosofia da minha vida é sobretudo tratar de ser feliz cada dia, com harmonia, com tolerância. Rir. Rio muito. Minha família é muito importante para mim, mas também meu país.
Não me agradam os apáticos e os indolentes. Meu país me dói. Tudo que acontece me dói, e creio que esse é também o combustível para fazer meu blog. Se nada me importasse, se eu me alienasse de minha realidade, não escreveria as coisas que escrevo. Eu as escrevo precisamente porque Cuba me importa. E me importa porque quero que meu filho e meus netos não tenham que emigrar para poder realizar seus sonhos, ou para realizar seus projetos profissionais e pessoais. Nessa direção emprego minha energia. Em fazer de Cuba um país onde se possam realizar os sonhos.
Ideologia e política
O que você me diz de ideologia?
Y.S. – Nunca militei numa organização política, nunca, e não creio ter uma direção, uma linha política clara. Isso é algo que a pós-modernidade trouxe, também. Antes, era muito fácil definir as pessoas, os processos, como de esquerda ou de direita. Hoje, já não está tão claro.
Acho que uma das características deste momento é que já não é tão fácil dizer se alguém é de esquerda ou de direita. Eu, pessoalmente, não defino politicamente a mim mesma. Creio ter muita tendência para a questão social, mas fundamentalmente me considero uma cidadã, que emite opiniões, que faz perguntas, que questiona ou reivindica. Mas eu mesma não me defino com uma coloração política.
De todo modo, os temas sociais, a questão das minorias, dos mais discriminados, me interessam sempre muito. Mas a direita e a esquerda já não estão tão claras, já não é tão fácil defini-las. Penso que sou tão pós-moderna como a situação atual.
E a política? Ideologia é uma coisa, filosofia é outra coisa. Mesmo sem ser militante, existe política na sua vida.
Y.S. – Em Cuba, ninguém pode se manter à margem da política. Respiramos política, comemos política. Por quê? Porque a sociedade cubana está muito politizada. Eu nunca pertenci a uma organização política, mas isso não significa que não tenha uma projeção política. Muito bem. Essa projeção política não implica ter uma posição alinhada com o governo, ou contra o governo. Eu me considero – e nisso me defino como um elétron livre – uma pessoa que é da sociedade civil, tratando de descrever como vive e tratando de conectar-se com outras pessoas da sociedade civil.
Claro, para o governo isso é oposição. Mas eu mesma não me defino como uma opositora. O que acontece é que o espectro de classificação que o governo usa para as pessoas independentes, alternativas, cidadãos com voz própria, ou com critérios próprios, como eu, é muito esquemático. Tudo é branco ou preto. E, para o governo, as pessoas que não aplaudem são opositoras.
Penso que essa saturação política da sociedade cubana, sobretudo nos meios de imprensa, de informação, criou nas pessoas o efeito contrário. Criou apatia, desinteresse. Fez com que muitas pessoas se fechem numa bolha, em suas casas, e não queiram ter contato com o mundo exterior, de tão politizado que está.
Ainda que eu me sinta uma pessoa com muito envolvimento político – gosto de ler as notícias, estar a par do que acontece –, creio que também tenho minhas zonas pessoais onde a política não entra, onde me refugio desse mundo político que normalmente se torna tão incompreensível para o cidadão. E essas grandes zonas onde me refugio da política são a literatura, minha família, meu lar, meus hobbies – a botânica, a jardinagem –, e assim me desligo dessa realidade tão excessivamente politizada.
A mágica de botar comida na mesa
O tema agora é alimentos.
Y.S. – Esse capítulo, em Cuba, repousa fundamentalmente sobre os ombros das mulheres. Depois de 50 anos de projeto de emancipação feminina, na realidade em Cuba continuamos tendo uma estrutura machista da família e da sociedade. Então, as mulheres cubanas têm que fazer cada dia muita mágica, são umas verdadeiras magas, para poder colocar um prato de comida para os filhos, para os maridos, para a família. No meu caso particular não é assim, porque tenho um marido muito emancipado (riso). Fazemos juntos todas as coisas da casa. Mas muitas mulheres têm uma verdadeira dupla jornada de trabalho. Uma fora de casa, em sua profissão, e outra quando chegam em casa.
A questão da comida é, no momento, uma preocupação geral dos cubanos. Primeiro, porque a maioria dos alimentos necessários para sobreviver não tem um preço correspondente aos salários. Os salários são em pesos cubanos; a maioria dos produtos que se vendem é em pesos conversíveis [pesos conversíveis valem 27 vezes mais do que pesos cubanos]. Essa esquizofrenia econômica, essa contradição monetária faz com que, para as mulheres, seja uma verdadeira angústia diária achar o que colocar na mesa.Eu não me considero uma pessoa consumista. A crise econômica dos 1990 me fez saber que posso viver com muito pouco. Isso é importante. Porque me parece que essa mesma crise econômica criou em muitas outras pessoas um apetite voraz, uma falta de medida na hora de consumir. No meu caso particular, criou o efeito contrário: saber que necessito de muito pouco para sobreviver. Meu marido brinca comigo e diz que eu tenho "alma de faquir", porque sou uma pessoa que, se tem comida, perfeito, se não tem, não importa, tenho outras coisas que também me dão gosto e me divertem, entretêm.
Mas acho que a angústia principal que passo a cada dia é alimentar meu filho. Acredito que isto gera muita tensão para as mães: ter um filho adolescente, que precisa alimentar-se, porque é magro e pequeno, e saber que materialmente não conseguimos lhe dar tudo de que necessita. De toda forma, como aprendi essa mágica, como todas as mulheres cubanas, quase todo dia posso resolver a questão alimentar com muita, muita criatividade, muita imaginação e muito tempo fazendo fila, muito tempo inventando, muito tempo preparando os alimentos.
Tênue fronteira da legalidade
Você nunca teve a tentação de fazer alguma coisa ilegal?
Y.S. – Nós, cubanos, necessitamos cada dia fazer muitas coisas ilegais para sobreviver. Quase a cada minuto temos que transpor a linha entre a legalidade e a ilegalidade, para tudo. Porque em Cuba o mercado negro é muito importante para sobreviver. Sem o mercado negro, sem os produtos que nos são trazidos à porta de casa, sem os vendedores ilegais, muitas famílias estariam muito mal. Por isso acredito que faço, sim, coisas ilegais, como 99% dos cubanos têm que fazer para sobreviver.
Você nunca teve vontade de ser, vamos dizer, mais rica do que seus vizinhos, ou com a vida melhor, fazendo permanentemente uma atividade ilegal?
Y.S. – O que acontece é que em Cuba há muitas coisas proibidas. Por exemplo, talvez a maioria pense que fazer um blog, escrever opiniões na internet, pode ser proibido. Portanto, pode ser que sim, que eu faça coisas proibidas e ilegais. Mas não me dedico a nenhuma atividade ilegal que fira minha consciência. Todas as vezes que passo a linha da ilegalidade é para sobreviver, para alimentar minha família. Não estou vinculada a nenhum tipo de negócio ilegal. Acho que me considero impedida de fazer essas coisas também por uma questão de educação e de ética. De todo modo, na sociedade cubana todas as limitações legais e as proibições fomentam muito a ilegalidade. Por isso, de alguma maneira todos somos um pouco delinqüentes.
Estantes solidárias
E os alimentos para a mente? Quando eu estive em Havana, não tinha muito livro para comprar, era difícil.
Y.S. – Eu tenho uma magnífica coleção de livros em casa, uma biblioteca muito boa. Em parte são livros meus que arrasto desde a infância e outros são livros de meu marido, que também foi acumulando muita literatura em toda a sua vida. Mas paralelamente a isso há uma espécie de rede de distribuição de livros entre amigos. Decidi há anos que o mais importante para mim é ler os livros. E, uma vez lidos, já não me importa tanto conservá-los. Por isso leio os livros e os passo a outras pessoas.
E assim acontece com muita literatura que em Cuba não é vendida em lugar nenhum ou está proibida. Penso, por exemplo, nos romances de Milan Kundera, que jamais foram vendidos em Cuba. Penso nessa literatura de exilados cubanos pelo mundo, Cabrera Infante, Jesus Diaz, Eliseo Alberto Diego, que nunca se vendem nas livrarias cubanas – e posso ter um problema, ficar malvista se tiver um livro desses na mão e alguém me vir.
Mas graças aos amigos, a essa rede alternativa e subterrânea que muitas pessoas se dispõem a fazer, trocando livros, estou muito atualizada em matéria de literatura internacional. Funciona assim. Os alimentos para a alma também implicam transpor a linha da legalidade.
Informática abafou a lingüística
O que diz da tecnologia? Você disse que montou seu próprio computador.
Y.S. – A informática e a computação são hobbies meus há mais de 14 anos. É um hobby que pouco a pouco foi deslocando minha profissão de filóloga. Hoje me considero mais informática do que filóloga, porque passo mais tempo programando, desenhando páginas web, consertando códigos HTML do que fazendo um trabalho de lingüística. Faz 14 anos, tive meu primeiro computador, montado com peças do mercado negro, e a partir de então eu, e muitos jovens como eu, soubemos substituir com peças do mercado negro, com invenções, com verdadeiros Frankensteins a ausência dessa tecnologia nas lojas e a impossibilidade material de ter acesso a um computador novo, legal, com nota de compra.
Isso caminhou assim até mais um menos dois meses atrás, quando o governo de Raúl Castro autorizou a venda de computadores legalmente. Graças a essa inventiva, a essa criatividade, e à ousadia que nós, cubanos, temos para fabricar engenhos tecnológicos, pude desenvolver essa segunda profissão, que é a informática.
Anonimato e protagonismo
Fale agora de duas coisas contraditórias: o anonimato e o protagonismo. Primeiro, o anonimato. Você é anônima para os seus vizinhos, você anda no seu bairro pelas ruas e ninguém sabe direito quem você é?
Y.S. – O processo de passar do anonimato em que eu vivia para estar no centro dos meios de imprensa de muitas partes do mundo foi muito rápido para mim. Eu, particularmente, sempre fui alguém que gostava da privacidade, da intimidade e do anonimato. Acho que não há adjetivo que um cidadão receba com mais felicidade do que o ser anônimo. Um cidadão normalmente é anônimo, desconhecido, pequeno. Essa questão do estrelato, de estar nos jornais e na televisão de quase todo o mundo trouxe algumas mudanças para minha vida. Os jornalistas me perguntam mais, recebo mais telefonemas. Mas creio que na essência sigo mantendo um mundo privado, íntimo, muito fechado.
Eu prefiro o anonimato. O anonimato me permite criar com mais tranqüilidade, observar com mais objetividade. E penso que se os políticos tivessem a intenção de ser mais anônimos, menos espetaculares, os problemas que temos se resolveriam melhor. Quando a política deixar de ser um palco onde se procura brilhar e exibir-se e se converter num grupo de pessoas anônimas que tentam resolver os problemas e administrar um país, acho que muitos dos problemas que temos agora começarão a ser solucionados.
Diante da dicotomia entre anonimato e estrelato ou publicidade, fico com o anonimato, que é sempre muito mais real, mais autêntico, mais espontâneo. E mais duradouro. Porque os palcos, a imprensa, tudo isso passa, e no final cada pessoa fica com si mesma, e ela mesma é o ente mais privado, mais íntimo que possa encontrar.
Sonho: viver numa Cuba plural
Quais são seus sonhos?
Y.S. – Tenho muitos sonhos. Acho que se alguma coisa me caracteriza é que estou constantemente sonhando. Tenho sonhos de viver numa Cuba plural, inclusiva, onde caibamos todos.
Tenho o sonho de escrever um livro, publicá-lo, ver meu nome na capa, isso me agrada muito. Como toda filóloga, toda apaixonada pela literatura, creio que a máxima realização seria começar a publicar meus textos, a escrever, e que os outros leiam o que escrevo.
E os sonhos têm relação, sobretudo, com meu filho. Quero que meu filho encontre um espaço nesta Cuba onde hoje tantos jovens emigram, que ele não tenha que emigrar para ter uma profissão, para poder ter um teto próprio, para poder manter sua família. E também seguir junto a meu marido e ao grupo com que trabalho no portal Desde Cuba, fomentando e alimentando a sociedade civil cubana. Sonho que essa sociedade civil desperte, que não se deixe guiar por ideologias nem por líderes carismáticos, e que sinta que o país pertence à sociedade civil, que somos nós os responsáveis pelo que aqui se passa.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Da 'Folha' de domingo

JUCA KFOURI
Os Jogos da hipocrisia
-------------------------------------------------'-------------------------------Não é de hoje que o Movimento Olímpico perdeu seu idealismo. Mas Pequim passa de todos os limites --------------------------------------------------------------------------------
"POR QUE você não foi para Pequim?", perguntam.
"Porque não quis", respondo. Mais: estou entrando em férias e só volto aqui no dia 21. (Nota do blog: o "aqui" se refere apenas ao jornal...).
Claro que verei a Olimpíada e até comentarei no blog, mas ando cheio de tanta hipocrisia, a começar pela caça aos que são pegos no antidoping por hábitos que só fazem mal e pioram o rendimento.
Não aceito ver essa cartolagem imunda da família olímpica no papel de fiscal dos hábitos da juventude e, ainda por cima, expondo jovens à execração pública, como acabam de fazer com um jogador do handebol brasileiro.
Como não suporto o ufanismo da maior parte das narrações, com as exceções de praxe para os felizardos que podem assinar um canal de televisão fechada, razão pela qual darei uma fugidinha do país para acompanhar Pequim de uma cidadezinha colonial mexicana apaixonante chamada Guanajuato.
Porque passa do limite ver um Carlos Nuzman fazer quase o elogio da poluição ou se jactar pela maior delegação brasileira da história, quando só 12% de nossa rede escolar tem quadras de esporte. Aliás, quanto mais medalhas o Brasil ganhar, mais ficará demonstrado o desvio de sua não-política esportiva, porque privilegia o alto rendimento em vez da inclusão social ou a saúde pública por meio da prática de esportes.
Dá engulhos ver a cartolagem em hotéis de até sete estrelas enchendo a boca para dizer que esporte e política não se misturam, quando nada foi mais político do que escolher Pequim para receber os Jogos, cidade que, além de poluída, é uma capital que se notabiliza por cercear direitos básicos da cidadania.
Tudo por dinheiro, tão simples assim.
Porque a China talvez seja o melhor exemplo, com todas as suas contradições, de como ainda não se achou um sistema razoável, tão óbvias são as mazelas do comunismo e do capitalismo reais.
É claro que verei tudo, é claro que me emocionarei com as vitórias brasileiras, como com a festa de abertura.
É evidente que torcerei para que aconteçam triunfos como nunca, porque tenho a surpreendente capacidade (surpreende a mim mesmo, diga-se) de voltar a ser criança a cada competição em seu apito inicial.
E não é de hoje.
Faço assim com os jogos de futebol lá se vão bem uns 26 anos, depois que se revelou a existência da chamada "Máfia da Loteria Esportiva".
Porque paixão é paixão e não se explica, não se racionaliza, se sente.
E se curte.
Sim, eu sei que serei capaz de me comover às lágrimas até com a superação de um atleta que não seja conterrâneo, como já me aconteceu inúmeras vezes.
Mas é preciso que se diga que mais que em Atlanta, quando os Jogos Olímpicos modernos comemoraram cem anos e a Coca-Cola alijou Atenas de recebê-los num crime contra a história, esta edição chinesa é um soco em quem associa o esporte à saúde e à liberdade.
Lamento sentir assim, mas quem viveu a inesquecível festa de Barcelona-1992, cujos equipamentos até hoje são utilizados por quem os pagou, os catalães, além da hospitalidade que recebeu o mundo tão bem, não pode engolir Pequim-2008.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

DOIS FATOS DUAS RESOLUÇÕES

Recife,05 de agosto de 2008.

No Jornal do Commercio a mancete anuncia o escândalo das notas "frias" emitidas pela maior parte dos vereadores do Recife.Gráficas inexistentes,Almoços exorbitantes,tudo isso usado pelos que dizem "representar o povo".Representantes que ficaram indignados com a divulgação do escândalo que juntou o "oposicionista" Daniel Coelho com o vereador da situação Osmar Ricardo.Do Pc do B ao PFL,passando pelo PT ,várias siglas estão incluidas.

No mesmo dia ambulantes expulsos pelos mesmos governos que têm parlamenares implicados no escândalo fazem um monumental protesto pelo direito de trabalhar.Pouco mais de 70 ambulantes que foram expulsos pela EMTU dirigida pelo PT sob a acusação de "organizar o terminal".

Para os vereadores que lesaram o dinheiro dos recifenses: O direito garantido a reeleição!Será que alguém será punido?aposto que não,o presidente da casa(PT),que já defendeu aumento de salários para os mesmos colocou logo "panos quentes" na situação.

Para os ambulantes a certeza de ficarem sem um parco rendimento e só!

P.S: Uma congratulação ao comandante da PM que buscou o diálogo durante a manifestação contrariando as orientações da EMTU -PT(que queria o fim do protesto a todo custo) .

domingo, 3 de agosto de 2008

Uma interessante entrevista...

Chico de Oliveira: A esquerda não chegará nunca ao poderPublicado em 03.08.2008, às 19h07
Um dos fundadores do PT, o sociólogo Chico de Oliveira, hoje no PSOL, não vê a eleição deste ano como termômetro para 2010
Sérgio Montenegro Filhoe Paulo Sérgio ScarpaDo JC
Utilizar a disputa municipal de 2008 como termômetro para avaliar as chances do governo de fazer o sucessor em 2010 é um lance arriscado do Palácio do Planalto. A advertência é feita pelo cientista político Chico de Oliveira. Fundador do PT - com quem rompeu após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegar ao poder -, e hoje filiado ao PSOL, ele defende uma tese diametralmente oposta à do governo quanto à associação da imagem dos candidatos petistas à de Lula. Acredita que em alguns municípios isso pode trazer mais prejuízo que lucro eleitoral. Mas também desaconselha candidatos de oposição a baterem no presidente, por conta da boa avaliação da sua popularidade. Professor de sociologia da Universidade de São Paulo e um dos maiores especialistas em estudos políticos do País, Chico de Oliveira é considerado um dos últimos intelectuais da "esquerda pura", embora afirme sem meias palavras que essa esquerda jamais chegará ao poder. Ele esteve no Recife e concedeu esta entrevista exclusiva ao JC OnLine, na qual diz que, no Brasil, ser governista tornou-se uma tradição e afirma ser improvável uma aliança PT/PSDB para 2010, embora admita que os partidos têm perfis muito semelhantes, centrados na social-democracia.
Como o senhor vê essa tese de que a eleição este ano seria um plebiscito para 2010?CHICO DE OLIVEIRA - Engana-se quem fizer da eleição municipal um termômetro, porque uma eleição majoritária nacional ganha outro caráter, e tanto as pequenezas como as grandezas de uma eleição municipal, na eleição nacional podem mudar de sentido. E o político que faz isso revela um grande desconhecimento dos mecanismos da política. Lula não será exceção, por mais que ele se vanglorie de fazer o que faz, não sabe, não. Sobretudo nas grandes capitais, esse é um lance arriscado. Em São Paulo, Marta Suplicy está muito bem. Surpreendentemente, porque ela teve uma erosão de credibilidade muito forte, mas se ela se associar muito a Lula, a candidatura pode naufragar.
Essa associação com Lula já está no Recife, com João da Costa dizendo-se o candidato do presidente. Isso não muda conforme o perfil sócio-econômico do eleitor?CHICO - Sim. Nas cidades mais ricas, essa associação não tem causalidade positiva nenhuma, digamos. Pré-eleitoralmente, pode até se revelar a tempo, mas será uma surpresa. Ela não reforça a candidatura. Nas eleições passadas, para prefeito de São Paulo, quando Marta tentou associar muito seu nome a Lula ela foi derrotada precisamente por isso, porque Lula estava na época com péssima avaliação por causa dos escândalos. Na época, eu ainda tinha contatos com gente do PT e dizia para não fazer isso porque iriam se arrebentar. Os humores eleitorais de São Paulo não estavam para isso. Eles fizeram, Lula foi lá e foi pior para Marta.
Tem uma estratégia dos candidatos de oposição ao PT de não bater em Lula temendo uma queda. Isso está acontecendo aqui...CHICO - Anti-Lula não é bom em nenhum lugar. Mesmo em eleitorados que são majoritariamente anti-Lula, não é bom bater, porque a avaliação do governo dele não é ruim, você perde votos em vez de ganhar. Mas os candidatos que fazem estratégia de criticar o governo, mas não Lula. É melhor criticar só a administração porque a popularidade do Lula está desassociada de seu governo em muitas partes do País, como no Nordeste.
Como o senhor avalia a popularidade alta de Lula, após os escândalos do primeiro mandato?CHICO - A avaliação positiva tem vários fatores, como o relativo êxito econômico. O principal, é que é relativo, porque não é nenhuma maravilha um crescimento que, para as condições brasileiras, é medíocre. Ele não tem muito do que se vangloriar. Em segundo lugar, dizem, que o Bolsa Família exerce um fator positivo na avaliação, mas não em todas as regiões. exerce, sobretudo, nos Estados mais pobres, como os do Nordeste. Em São Paulo, por exemplo, o programa não tem maior relevância.
Ninguem quer mais ser oposição nesse País? Todos querem se beneficiar com alguma fatia do governo Lula?CHICO - Isso é uma tradição brasileira, não é parte do sistema partidário não. Faça o que quiser, reforme o que quiser, isso faz parte da formação da política, que você não anula de um dia para o outro. Uma coisa importante é que os dois partidos que surgiram tentando modificar essa cultura política, o PT e o PSDB, se aliaram aos demais. Não é fácil desfazer-se de uma velha cultura política patrimonialista. Depois, percorra toda a história política passada e verá que pouca gente ficava na oposição. Mesmo Getúlio Vargas, que foi um governo muito marcante com uma oposição muito definida, coptava membros da UDN. Em Pernambuco, Vargas coptou o udenista João Cleófas, que acabou ministro da Agricultura dele. Isso porque o Estado brasileiro tem um peso muito grande. A caneta de um presidente no Brasil pode mexer em 20 mil postos do Estado. Na França, o presidente mexe em 300, assim como na Inglaterra, Canadá e Estados Unidos. A França tem uma velha burocracia estatal muito bem estabelecida, onde não existe cargo de confiança, mas cargo de carreira. E ninguém pode mexer naquilo. A França que é um país com um PIB três vezes superior ao do Brasil. Quem é que não quer então estar no governo? É muito mais fácil manejar verbas, fazer coalizões locais, isso faz parte da mais antiga história poltica brasileira. Lendo a biografia de Joaquim Nabuco, que foi um estadista, você vê que em Pernambuco não se elegia ninguém sem o apoio de um cacique.
O PT e o PSDB tentaram uma aproximação aberta em Belo Horizonte (MG) e, depois, Lula mandou um recado a FHC, para conversar. Haverá, enfim, essa aproximação?CHICO - Não haverá, porque cada partido tem seu eleitorado, aos quais ele dirige especialmente a sua fala. Não são mais interesses de classe, uma velha divisão de interesses que a esquerda sempre pensou que fosse o ponto de equilíbrio da política e que, na verdade, foi o marxismo que inventou. Isso de que a política tem a ver com o interesse de classe. A esquerda sempre orientou sua ação por aí, mas não é bem assim. São particularidades da política que têm outras conotações. Então, PT e PSDB criaram eleitorados aos quais a mensagem deles é mais receptiva, embora se você examinar desse ponto de vista, os interesses de classe que eles defendem são muito parecidos.
Como o próximo presidente poderá desaparelhar a máquina administrativa federal?CHICO - Terá dificuldades. Não são intransponiveis mas, ao nomear cargos como esses, o governante cria a sua subclientela, e vai formando uma rede muito entranhada, criando dificuldades. O que é bem possível que ocorra, e as tendências indicam, é que o próximo presidente será um tucano, e ele terá muitas dificuldades.
Chega a ser visível a queda de qualidade dos serviços federais por causa desse aparelhamento...CHICO - Não chega a ser visível por causa disso, mas porque o investimento social é pouco, mesmo que se proclame o Bolsa Família. O investimento social é pouco em relação ao nosso PIB. Há um dado que diz que todo investimento social do governo federal no penúltimo ano foi de R$ 20 bilhões. O lucro dos cinco maiores bancos brasileiros foi isso. Logo, o Bolsa Família é irrisório se comparado com o serviço da dívida pública. É de 20 por um.
Seríamos muito severos ao dizer que o governo Lula está voltado para os juros altos dos empresários, bolsa para os pobres e mensalão para os corruptos?CHICO - Não, não estariam equivocados. Só que essa não é uma característica do governo Lula. Os dois elementos anteriores estavam no governo FHC, não estava o terceiro elemento porque a social-democracia brasileira não tem nenhuma raiz com trabalhadores e sindicatos, caso único no mundo. Não sei como eles conseguem chamar o PSDB de social-democrata. Corrupção e mensalão havia no governo FHC, e havia até mais por causa das privatizações.
A esquerda, hoje, no País, é o PSOL e o PSTU? Eles conseguem atingir a sociedade?CHICO - Muito pouco. Participei da fundação do PSOL por uma questão estratégia, não por uma questão eleitoral e pragmática. Participei para que a crítica de esquerda não desaparecesse, e entendo ser essa a função. Só que o pessoal que compõe o PSOL não entende assim, tem projeto de poder político. Eu não tenho. Não tenho porque acho que esse ciclo da ascensão da esquerda no Brasil para funções de governo está encerrado. Não vai reaparecer nas mesmas formas. Não que o ciclo da esquerda esteja encerrado.
Como seria a esquerda no poder?CHICO - A esquerda não chegará nunca ao poder. Não chegará pelo menos nos proximos 30 anos, numa avaliação muito vaga. As bases comas quais a esquerda se ergueu durante o século 20, sobretudo a esquerda brasileira, que se reergueu a partir da experiência da ditadura militar - com o movimento de redemocratização forte e com os sindicatos praticamente liberados para ações - essas bases sociais não existem mais. Com uma confluência extraordinaria de forças do sindicalismo que não era de esquerda, foi puxado para a esquerda por duas forças importantes: o movimento de redemocratização, do antigo MDB, e a esquerda desvalorizada pelo reformismo. Alguns dizem que sou reformista, mas eu costumo dizer que sou reformista desde criancinha e, prestem atenção, todo grande revolucionário foi antes um reformista. É na luta pela reforma que você aprende os limites do sistema. E aí, alguns tentam se virar contra ele ou não.
Assim como ocorreu entre o PCB e o PCdoB, no racha entre os defensores do combate institucional e da luta armada?CHICO - Uma parte do PCdoB. Mas aquilo era um grande desconhecimento, que, para um marxista, não se permite.
Não o irrita, como marxista, o uso indiscriminado e eleitoreiro da palavra "esquerda"?CHICO - O PT foi de esquerda, as forças que formaram o partido na década de 80 eram de esquerda, os sindicalistas, fora um ou outro, nunca foram de esquerda. A grande força de esquerda que entrou no PT veio de outras matrizes, veio da luta armada urbana fracassada e destruída, veio da academia em parte, veio da Igreja Católica, com a teologia da libertação, no seu auge, com forte conteúdo da esquerda. Daí ser combatida pelo Vaticano por ser um evangelho marxista. Uma grande contribuição da Igreja Católica, não das demais igrejas, que nao tiveram uma teologia voltada para os pobres. E aquela igreja trouxe um forte conteudo ético pra a esquerda brasileira, que não tinha. Fui militante da esquerda aqui no Recife desde os anos 50. Os socialistas tinham um forte sentido ético, mas o Partidão (PCB) não. O Partidão fazia qualquer coisa, até porque estava na clandestinidade.
Tem algum candidato hoje, não sendo do PSTU ou do PSOL, com condições de se declarar de esquerda? Ou é um grande descaramento?CHICO - Não tem e não comove. Não seria descaramento, mas comove só algumas parcelas românticas do eleitorado. Qual é a mensagem de esquerda diferente hoje? Até a direita é a favor da questão social no Brasil.
Essa igreja mais libertária poderá um dia retornar ao PT, ou o casamento foi dissolvido?CHICO - Acho que o casamento foi dissolvido, não por causa da ética, mas de um lado por causa da prática do poder, e de outro por causa da repressão do Vaticano, que atuou muito fortemente contra. Ali onde a Igreja da Libertação era mais infiltrada nas bases, como no Recife e Olinda, e em São Paulo, o Vaticano fez a velha técnica de reinar para dividir: esquartejou a arquidiocese de São Paulo em cinco bispados e o cardeal de São Paulo não quer dizer mais nada. Dom Paulo Evaristo Arns, que foi um grande bispo, teve um peso extraordinário, e a sua arquidiocese também. Quando a gente saía da cadeia, ia falar com dom Paulo. Quando eu saí da cadeia pela segunda vez, fui falar com ele e, surpreendentemente, também fui falar com o ministro Severo Gomes.
Mas Severo Gomes era um político diferente dos demais, não é?CHICO - Ele era surpreendente, porque era um liberal. depois ficou meio reacionário quando foi ministro do Castello Branco e do Ernesto Geisel, e depois converteu-se ao nacionalismo, uma coisa extraordinária. Saí da cadeia e ele mandou um recado que queria uma declaração minha e de dois outros companheiros de cela. Olhe bem como é difícil, de um populista macro-sociológico, avaliar as pessoas. De longe, Severo Gomes era um liberal. Ele nos colocou, a mim e a dois amigos meus, na casa dele, defronte da PUC-SP, e escreveu a declaração com uma caneta, porque iria entregar ao Geisel pessoalmente. Só tirou uma cópia daquilo, porque a outra foi para o Golbery, e ele ficou com uma terceira via. Nós descrevíamos como era a prisão sob o regime no relatório ao Geisel. Era um relatório sobre as condições das prisões, justificando que não daria a uma datilógrafa. Dizia que o SNI (Serviço Nacional de Informações) estava em todas as partes. E que entregaria ao Golbery ele mesmo, porque o julgava um bandido.